ATL-100, o primeiro programa aeronáutico completo em Portugal
Em entrevista exclusiva à AED, Miguel Braga (CEiiA), falou sobre um dos projetos mais ambiciosos da aeronáutica portuguesa: o ATL-100.

Numa parceria entre Portugal e Brasil, o CEiiA e a DESAER irão desenvolver, fabricar e montar o ATL-100, que será o primeiro programa aeronáutico completo em Portugal.

Com configurações para o transporte de passageiros com capacidade até 19 passageiros e para carga até 2,5 toneladas, o ATL-100 será de uso civil e militar e foi idealizado com o objetivo de colmatar as necessidades de transporte regional em áreas já adensadas e nas regiões mais remotas, necessitando de pouco apoio de infraestrutura no solo e possibilidade de aterrar em pistas curtas e não pavimentadas.

A AED entrevistou Miguel Braga, Diretor do CEiiA (Aeronáutica e Defesa), para falar sobre este ambicioso projeto.

 

AED: Como surgiu esta iniciativa?

MB: No primeiro semestre de 2019, o CEiiA foi abordado pela Desaer, uma empresa brasileira sedeada em São José dos Campos, criada em 2016 maioritariamente por ex-engenheiros e quadros da Embraer, para avaliar o nosso interesse em nos associarmos a um programa aeronáutico que estava a ser pensado e com um conceito já bastante avançado. A principal razão desta abordagem, como então nos confidenciaram os responsáveis da Desaer, é a reputação que o setor aeronáutico português tem hoje no Brasil, desde logo e principalmente pela nossa participação no Programa KC-390 da Embraer, mas também pelo caminho de crescimento que muitas das nossas empresas, de diferentes estruturas, sistemas, operação e outras têm feito ao longo dos anos mais recentes. O CEiiA ponderou cuidadosamente o convite, analisou o conceito de aeronave então em projeção, a complexidade do programa e considerou que se trata de um avião com a complexidade, escala e caraterísticas ideais para subirmos na cadeia de valor e dar sequência lógica às competências que ganhamos com mais de 600 mil horas de engenharia que já levamos implicadas no KC-390.

AED: Qual o segmento de mercado que almeja e como se relaciona com o contexto atual do COVID-19 e a disrupção que introduziu no mundo da aviação?

MB: O ATL-100 é uma aeronave não pressurizada, de trem de poiso fixo, com custos de fabricação e montagem baixos, que pretende ser competitivo num mercado onde, por um lado, as maiores OEMs foram progressivamente ao longo dos anos deixando de produzir esta tipologia de aviões e, por outro lado, nos próximos 15 anos mais de 5000 aviões deixarão de voar por final de vida. Está pensado para atuar em países e regiões com infraestruturas rodoviárias débeis, desde logo África e América Latina, em que se demora muito tempo em fazer chegar pessoas, mercadorias ou equipamentos a regiões mais remotas (e tempo é dinheiro), servindo também o propósito de tornar muitos aeródromos e pequenos aeroportos, hoje pouco ou nada utilizados, alternativas pela facilidade do ATL-100 aterrar em pistas muito curtas e com condições minimalistas.

AED: Que características inovadoras traz o ATL-100 ao mundo da aeronáutica como produto e como se diferencia da competição?

MB: Olhando para a plataforma base que está a ser trabalhada, o primeiro fator de diferenciação é o preço final da aeronave e ainda mais o custo hora de operação, tendo em conta que as projeções e, mais do que isso, as letters of interest que já recebemos demonstram que os operadores logísticos por exemplo estão mais interessados em pagar pela operação da aeronave do que em adquiri-la. A configuração do ATL-100 permitirá transformar a cabina do avião de carga para passageira e vice-versa em menos de duas horas, permitindo tirar o maior proveito em cada segmento de viagem em função do destino ou do horário. Mas a maior diferenciação é o facto da aeronave estar desde raiz pensada para evoluir ao nível das motorizações elétricas, para a utilização de hidrogénio, tornando-se progressivamente neutra em carbono, dando corpo a uma tendência global de um avião sustentável.

AED: Ir-se-á construir uma fábrica de origem, uma oportunidade única para integrar também aspetos diferenciadores no processo produtivo. O contexto da indústria 4.0 será relevante para a competitividade da solução?

MB: Estamos a olhar para diferentes alternativas, seguramente teremos uma linha de montagem final construída de raiz, até porque não existe nenhuma em Portugal, constituindo de resto este aspeto uma novidade, infraestrutura que ficará localizada em Ponte de Sor no Alentejo. Quanto à fabricação, porque queremos que o avião seja o mais português que todos, em conjunto, conseguirmos que seja, vamos olhar para a capacidade disponível em Portugal ao nível das ferramentas e da peça avião e a partir daí pensar o que ainda nos falta. Note-se que temos hoje em Portugal capacidade de fabricação muito avançada, não só no Alentejo, mas em outras zonas do País, como a Embraer, a Ogma, a Lauak, a Caetano, a Mecachrome, a Motofil, a Incompol e por aí fora. Não vamos replicar, mas valorizar e fazer crescer as capacidades que Portugal tem sido capaz de criar.

AED: Com um investimento de cerca de 140M€, estima-se que o projeto da aeronave ATL-100 crie cerca de 1200 postos de trabalho diretos na região do Alentejo.
Estes são dois grandes benefícios diretos facilmente mensuráveis e muito importantes, tanto para o setor, como para a economia nacional. No entanto, sabe-se que neste tipo de projetos abrangentes, o impacto indireto pode ser igualmente significativo.

  • Como irá o CEiiA envolver a cadeia de fornecimento portuguesa neste processo?
    MB: No seguimento do que disse atrás, queremos a maior incorporação nacional possível, o ATL-100 é um avião luso-brasileiro, orgulhamo-nos desse facto, mas que crescerá em Portugal, saindo do Alentejo para o mundo.
  • Espera-se, portanto, que haja uma grande integração nacional? Estamos preparados para o desafio?
    MB: Portugal já demonstrou em outras ocasiões estar preparado para grandes desafios, também na aeronáutica, fizemos a engenharia de dois terços da maior aeronave alguma vez construída pela Embraer, produzimos em Portugal três importantes segmentos da mesma aeronave, as nossas empresas trabalham com a Airbus, com a Leonardo Helicopters, com a Kopter, com a TAP, com a NAV, com as nossas Forças Armadas. Vamos precisar de ser ambiciosos, de correr riscos, de sair da nossa zona de conforto. Se quisermos, saberemos estar preparados.
  • Existe já algum plano temporal definido para a intensificação do diálogo com os parceiros locais?
    MB: Estamos a finalizar os primeiros RFPs necessários para uma adequada orçamentação da aeronave e estamos a falar com os fornecedores possíveis de aviónicos, motores, necessariamente internacionais. A partir daqui, há naturalmente espaço para integrar, customizar, desenvolver à medida. Durante o primeiro trimestre haverá novidades.
  • Qual será a melhor forma de promover o contacto para as empresas que queiram colaborar/dialogar sobre iniciativa?
    MB: Para o bem e para o mal, em Portugal somos poucos e conhecemo-nos todos, falamos muito uns com os outros, fica mais fácil. Mesmo assim, temos em fase final de formalização a constituição da empresa de capitais brasileiros e portugueses, que terá a sua estrutura, desde logo um procurement que articulará com toda a cadeia de fornecedores que precisaremos de integrar, privilegiando, sem disfarçar, a cadeia de fornecedores nacionais ou que estejam em Portugal.
  • Pensando a nível internacional, como é que esta iniciativa poderá mudar a imagem de Portugal lá fora? Poder-se-á esperar que traga efeitos positivos?
    MB: Seguramente. Subiremos no nosso posicionamento internacional como um todo, como País, com benefício para todas as nossas empresas na consolidação dos seus mercados atuais e na abertura de novos.
  • ATL-100 será uma aeronave ligeira. Após a consolidação do conhecimento que advirá deste projeto, poderá este ser o início de uma caminhada ainda mais ambiciosa?
    MB: Sem dúvida. Como dito atrás, o nosso caminho é produzirmos em Portugal uma aeronave neutra em carbono.

AED: Como é que o CEiiA vê o papel e importância da AED Cluster Portugal nesta desafiante iniciativa?
MB: A AED tem feito ao longo dos anos um caminho de afirmação e reconhecimento, junto dos seus associados, mas também dos principais stakeholders internacionais do setor. Será um parceiro imprescindível do programa ATL-100, tivemos muito gosto em contar com o José Neves na primeira apresentação pública do avião e contamos com a AED ao nosso lado neste caminho.

 

A fábrica onde será feita a assemblagem da aeronave estará em Ponte de Sor, ao passo que em Évora e Beja estarão dois locais de trabalho afetos à investigação e desenvolvimento de engenharia que o projeto exige.

O CEiiA está a contratar para este projeto (ver vagas aqui ou contactar careers@ceiia.com), com uma equipa dedicada à contratação de engenheiros com diferentes perfis, criando emprego qualificado, que estará sedeado no Alentejo, contribuindo para diminuir as desigualdades entre o litoral e interior do País. Pessoal interessado

Apesar de alguma indefinição no planeamento alinhado a meio de 2020, com alguns atrasos motivados pelo momento excecional que vivemos, prevê-se que até meio de 2024 se realize o teste em voo do primeiro protótipo e que se tenha a primeira aeronave de série produzida ainda em 2026.

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